“Minha Mãe
(todas as mães negras cujos filhos partiram)
Mas a vida matou em mim essa mística esperança[...]”
Expirado numa sexta feira cinzenta por volta das 19:00 hs com dois tiros nas costas .Mesmo depois de ter caído subitamente morto, deram-lhe mais dois tiros a queima roupa: não com a intenção de garantir a morte do potencial “elemento de alta periculosidade”, mas sim como forma de ostentar poderio. Não foi alvejado de surpresa, muito menos "sem dever nada, ou talvez quase nada” (como na música "Tá na hora" do Consciência Humana), eles(porque estava acompanhado)sabiam o que estaria por vir se trombassem com a polícia: por aqui as relações diplomáticas entre seus patrões e a polícia não andam muito bem.Nas suas rondas, que nunca foram rotineiras, eles estão ostentando seus cospe-chumbos e muita vontade de trabalhar, "fazer polícia" - um termo do ramo que significa a atuação policial sem considerar necessariamente o rigor da lei.
Não posso dizer que o conhecia no sentido estreito da palavra, mas, além de morar na mesma vila, ele era primo de um chegado meu e amigo de infância dos meus priminhos menores. Crescendo e presenciando o crescimento dos outros: as ambições desses moleques descalços com narizes escorrendo eram pipas e outras coisas de interesse característicos dessa idade; agora são roupas e calçados da moda, artigos importados, motos, pagar as rodadas etc.. Não ignoro que há, mesmo nessa infância, um impacto considerável do consumismo impulsionado pela mídia na vida dos moleques, mas eu acredito que na adolescência, quando se aprimora o senso de percepção da vida social, o impacto de um mundo de imagens ilimitadas de mercadorias, que, como é pregado veementemente nos púlpitos de todos os compartimentos de nossa vida social, quando adquiridas, nos tornam mais “alguém” e menos “nada” (qualquer pessoa séria não pode negar que, no contexto atual, quem não consome é como se não existisse, como se fosse invisível: “quando pago logo existo”! ), com o mundo real que é um obstáculo a qualquer aspiração que exceda as fronteiras da sobrevivência, tem proporções astronômicas. Certo não é, mas é justificável que se persiga intensamente, sob qualquer condição e utilizando qualquer método essas mercadorias que fazem de seus possuidores “seres visíveis e não ignoráveis”, afinal, o meio ilegal, justifica a finalidade de ser considerado gente; mesmo que se consiga tudo isso tirando, muitas vezes, de gente que não tem – como acontece direto.Mesmo havendo uma penalidade para quem faz pilantragem na quebrada onde reside, não há penalidade para quem faz pilantragens em outras quebradas: o crime é totalmente destituído de aspectos morais, e esses, quando existem timidamente, são burláveis de acordo com o nível hierárquico de quem burla – se uma essência no crime, “na vida baixa”(Facção Central) essa essência é o despotismo.
O caso é comum, a memória ainda está fresca, mas agente vai se lembrar durante algum tempo; não tenho certeza se me lembrarei perfeitamente de tudo, se levarei para minha cova as lembranças detalhadas de todos os que velei...se serei capaz de interligar lugares, faces, datas, dizeres a seus respectivos correspondentes... Provavelmente não, é impossível, pois a cada dia casos velhos dão lugar a casos novos e, quando menos se espera, a história mais marcante se torna memória vaga. Os detalhes são privilégios dos amigos mais íntimos e dos familiares que, esquecem os detalhes de outros casos, e no final cada um carrega seus próprios mortos. Ele será lembrado como exemplo de mais um da quase totalidade que vai de encontro ao final que, com muita relutância, já sabia que iria ter. Fiel a linhagem: o seu pai foi queimado vivo...
O importante, aqui, não é especular sobre o nível de periculosidade que ele poderia ter atingido ou se, talvez, ele pudesse voltar atrás e virar evangélico ou coisa do tipo – cobrando dos outros a retidão que ele nunca teve. O essencial é questionar a ordem que fabrica esses elementos, que empurra a todo o momento as pessoas pra criminalidade, que castra todas as potencialidades de cidadania inerentes ao ser humano, enfim, a ordem dos que fabricam a guerra, mas não morrem nela (MV Bill). Será que nossas políticas públicas têm capacidade de evitar a criminalização dos pobres? Não! Isso é inerente ao sistema capitalista: tanto a inexorável criminalização dos pobres quanto as raríssimas exceções de pobres que sobem na pirâmide social – na verdade uma estratégia para aparentar uma suposta democracia no sistema e evitar uma inevitável explosão. A nossa pirâmide, a meu ver, perde cada vez mais sua forma clássica: conforme se concentra a riqueza em poucas mãos e se equaliza a esmagadora maioria na miséria, os ângulos vão se estreitando, ela se torna mais cumprida do que larga, pois as classes intermediárias vão sendo eliminadas. Ela vai parecendo mais uma torre. O exército de reserva á espera de ser incorporado se tornou uma massa permanentemente estigmatizada e supérflua. Se antes, no auge da industrialização, os desempregados eram rapidamente assimilados pelas diversas empresas, hoje, com a revolução tecnológica e substituição do trabalho humano por máquinas a assimilação da mão de obra reserva se torna impossível. Uma nova sociedade é tão necessária quanto possível.
A violência urbana sem dúvida é uma imagem da luta de classes, confusa e implícita, que não culmina, ainda, numa batalha em bloco: explorados x oprimidos. Acreditem: tem pessoas que ainda buscam encontrar aspectos subversivos no crime (eu vi até mesmo pretensos “libertários dizendo isso ”). Pra provar o contrário não preciso ir longe: tanto policiais quanto bandidos são inimigos do povo. Normalmente costumasse empregar essa visão em relação à polícia, mas ignorasse o papel opressor dos criminosos nas comunidades. Ali eles são a lei, as regras e as exceções. Como eu escrevi antes: a essência da criminalidade é o despotismo. Uma vez eu ouvi na TV um morador (anónimo) de uma comunidade dizer que foi intimado por um traficante para que mandasse sua filha mais velha – uma adolescente de 15 anos, se não me engano – para atendê-lo sexualmente, se ele negasse, haveria retaliações.
No crime não há mais Hobin Woods. A periferia hoje não oferece risco para os poderosos pelo motivo de o egoísmo próprio dos poderosos ter sido exportado para os que nada têm, aqui, hoje, cada um pensa em si próprio. Ninguém se mobiliza, pois cada qual está voltado pra si mesmo. O favelado, hoje, é a sítese do famoso"Lupus est homo homini non homo" de Hobbes.
Que a autofagia periférica tenha fim. Que se inicie a luta de classes como ela deve ser. Que nessa violência bem canalizada se descubra a humanidade que do nosso povo foi subtraída, parafraseando Frantz Fanon: ”que a vida surja do cadáver em decomposição do opressor, dado que o seu poder significou a nossa ruína: que com um só golpe se abata um opressor e um oprimido.”
Como questionou Mike Davis em seu livro Planeta Favela:
“Mas se o urbanismo informal transforma-se em beco sem saída, os pobres não se revoltarão. As grandes favelas [...] não são apenas vulcões à espera de explodir? ou será que a impiedosa competição darwinista, quando um número cada vez maior de pobres compete pelos mesmos restos informais, gera em vez disso uma violência comunitária que se aniquila a si mesma como forma ainda mais elevada de ‘involução urbana’? Até que ponto o proletariado informal possui o mais potentes dos talismãs marxistas, a ‘ação histórica’?”
... A máquina de imagens deve ruir; a cada crise capitalista, as alternativas possíveis se esgotam...
Enquanto isso, um tapa em Alphaville provoca mais escândalo do que um genocídio diário em nossas comunidades...
Paulo Viana